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ApresentaçãoUm livro escrito por uma criança? Ou por uma mãe? Um livro escrito por uma filha, uma pedagoga ou por uma professora? 'Pretextos do Coração' é justamente isso: um conjunto de razões que faz com que a menina, a amiga, a companheira, a mãe e a mulher externem seus sentimentos, seus pensamentos, sua indignação com a injustiça cotidiana. Esse olhar feminino nos revela a beleza nas coisas simples: na atenção a um filhote de vira latas, na aventura das crianças espiando pelo buraco do banheiro, ou mesmo da menina se entrando no mar pela primeira vez. Ao mesmo tempo, disseca diante de nós a solidão, a dor, a resignação em continuar em frente, características muitas vezes comuns a tantas brasileiras... Suzana Nunes consegue tecer reflexões sobre temas cotidianos, ora evocando lembranças, ora arrancando gargalhadas do leitor! Aproveite a viagem. Você está em muito boa companhia. Você logo vai se convencer que um livro tão gostoso assim... Só poderia ter sido escrito por uma Mulher mesmo! 1. Subornando Criança
Chupei bico até os cinco anos. E pior que não era um só, eram três, um amarrado no outro com uma cordinha que já estava até encardida, tinha trocado de cor. Um eu chupava, o outro eu apertava e o terceiro eu cheirava, um cheirinho azedo. Depois de toda a insistência pra que eu abandonasse o hábito que viria a me prejudicar os dentes, minha mãe desistiu e minha tia resolveu me subornar. Aliás, coisa muito comum, que fazemos sempre com as crianças, coisa feia! Enfim, prometeu me levar junto na viagem de férias, ela e o marido recém-casados. Minas Gerais, Petrópolis e no final Angra dos Reis, para eu conhecer o mar, tudo isso se eu jogasse fora meu bico. Topei na hora, mandei longe. Viva o suborno! O passeio em Minas foi inesquecível, nadei na cachoeira, subi morro, comi todas aquelas comidas gostosas, perfeito. Lá em Petrópolis, depois de ir ao banheiro com a porta trancada – como uma boa mocinha deve fazer – percebi que não alcançava a cordinha da descarga e subi no vaso sanitário para puxar, toda independente. Resultado: o vaso estava solto, caímos eu, vaso, quebrou-se tudo e três pontos no dedão do pé, fora a porta arrombada, claro, pois estava trancada. Nem comento a gozação que tive que aguentar o resto da viagem, se duvidar até hoje ainda riem de mim. Criança sofre! Triste da vida, morrendo de vergonha, sentindo uma dor dos infernos, lá fui eu acabrunhada pra Angra, chateada por não poder entrar na água, na minha primeira vez na praia, poxa vida... Ai que saudade dos meus três bicos... Sentada lá, vendo todas as crianças pulando as ondinhas, olhava para o meu dedão enfaixado e pensava no bico. Que raiva... Isso que dá querer mostrar que é grande. De repente, olho para os tios, distraídos, nem me olhavam. Olho para o mar, me chamando, para o dedão... e lá vou eu! Quando eles viram, já era tarde, dedão latejando, esparadrapo flutuando, e eu lá, feliz por ter aproveitado meu suborno como deveria... Ah, todo mundo sabe que água do mar cura tudo mesmo... 2. A Lembrança de Maior Valor
Nunca gostei do Dia dos Pais. Desde que me entendo por gente, tenho que dar a mesma explicação às pessoas: “Meu pai morreu quando eu tinha três anos. Quase não me lembro dele.” Minha vontade era fazer uma pilha de panfletos e distribuir de uma vez, pra não precisar repetir. Na escola, quando chegava agosto, as professoras logo se assanhavam e começavam a inventar musiquetas, teatrinhos, cartões, tudo para as crianças homenagearem os papais. E eu ficava com vontade de sair correndo, me esconder em casa, mas era forçada a participar. Eu mesma me forçava, para não dar o braço a torcer. Sorte a minha que para os pais nunca fazem tanta festa quanto para as mães, e por isso na maioria das vezes era só um cartão, mesmo. Eu os entregava para um tio, que muitas vezes cuidou de mim enquanto minha mãe trabalhava. Mas o nó na garganta doía. Poucas lembranças restaram-me do meu pai. Uma delas era a dele me pegando no colo, outra dele no esquife, que para mim era uma “caixinha”, e a outra dele me contando histórias - esta a mais forte de todas. Na verdade, não me lembro mais das duas primeiras, só sei por que escrevi em meu diário. Mas lembro-me ainda dele sentado à beira da cama, que ficava colada em um guarda-roupa, lendo um livro para mim. Grudado no guarda-roupa havia uns desenhos feitos pelo meu irmão mais velho, entre eles um do Zé Carioca, todo verdinho. Quando falo do meu pai, a primeira imagem que me vem à mente é a do Zé Carioca. Era pra onde eu olhava enquanto ele lia... Apesar de darmos nossa vida nos sacrificando pelos filhos, e gastarmos longas horas trabalhando para prover suas necessidades, apesar de perdermos o sono quando ficam doentes, e nos preocuparmos com tudo que se relaciona a seu bem-estar, enquanto eles constroem seu “banco de memória emocional”, o que ficará mais forte será justamente aqueles momentos em que nós paramos de trabalhar e passamos nosso tempo a seu lado fazendo coisas simples. Dos três anos que meu pai esteve comigo, a única imagem que sobrou foi a de um quarto, à meia-luz, onde ele resolveu doar-me dez minutos do seu tempo e ser exclusivamente meu. E um papagaio de carona. Quando nossos filhos tiverem suas próprias crianças, passarão a valorizar melhor os esforços que hoje fazemos por eles. Mas quando fecharem os olhos, a imagem que virá provavelmente será uma daquelas a que não damos muito valor, e para a qual quase nunca temos tempo. Baseada em minha experiência pessoal, fico imaginando que imagens meus filhos guardarão. Uma brincadeira de esconde-esconde, uma pipoca, uma figura que colorimos juntos - uma destas, certamente ficará. E espero que justamente nesta eu não esteja com pressa de acabar logo para lavar a louça. Pois ela se transformará num tesouro sem preço para a vida inteira, assim como aquela que guardo de meu pai, para sempre. As crianças não são adultos em miniatura. Elas têm um jeito todo particular de processar os sentimentos, de aprender, de perceber o mundo. Precisam de presença, de contato, de cores, de cheiros, para crescer e se tornar maduras emocionalmente - muito mais do que segurança material e pais ausentes como preço. E sorte de quem consegue perceber isso antes que cresçam. 3. O Menino e a Saudade
Ele era meu amigo mais chegado, nos tempos de molecagem. Tínhamos alguns anos de diferença, mas ainda assim éramos companheiros de segredos e traquinagens. Subíamos em árvores, corríamos pela rua despreocupados, bons tempos... Uma vez, descobrimos um cano d'água que vinha da rua de cima, quebrado... E descobrimos também que quando jogávamos uma pedrinha lá dentro, que barulho engraçado fazia! Daí a jogar trezentas foi um pulo. Logo esquecemos a brincadeira, e no outro dia ouvimos, sem entender, aquela zoeira de tratores chegando, de homens cavando, britadeiras... Nunca contamos nosso segredo a ninguém, só depois de adultos... Mas na verdade, sentíramos uma pontinha de orgulho em sermos nós dois, os entupidores da rua... Meu primo desenvolveu uma técnica muito aprimorada de roubar peixinhos dourados na loja de agropecuária, e por isso ficou famoso entre a turma. Ele chegava, como quem não queria nada, parecendo uma daquelas crianças que ficam hipnotizadas pelos bichinhos... Que nada!!! Era ele a hipnotizar... Enfiava a mãozinha branca com uma velocidade impressionante e saía em disparada, com o peixinho apertado entre os dedos, o qual chegava, muitas vezes, mortinho da silva em casa, pela pressão exercida sem maldade, no susto da corrida. Mas alguns se salvaram. Eram como troféus. Até que um dia minha tia descobriu, com a contribuição do dono da agropecuária. Acabou-se a coleção e a festa. Noutra vez, bolamos um plano infalível: resolvemos cavar um buraco na parede que ía do quarto do meu tio até o banheiro, entre um velho armário da minha avó e algumas vassouras. Trabalhamos por semanas, medindo e calculando tudo meticulosamente. Éramos pequenos, a empreitada era arriscada e desafiadora. Quando finalmente conseguimos, passamos a fazer os testes. Ele foi para o banheiro olhar, conferir se calculáramos a direção exata do vaso sanitário. Eu de olho no buraco, vejo uma coisa estranha aparecer, e um jato quente no meu olho! Urinou, traiu a própria companheira de trabalho! Inesquecível... Daí pra frente foi um divertimento sem fim. Vimos toda a família pelada, morrendo de rir. Vimos nosso avô bêbado - não, trêbado - fingindo que tomava banho, durante dias. Nossa avó, tio, tias, primos, "todo mundo como veio ao mundo". Era só alguém ameaçar tomar o rumo do banheiro que lá íamos nós, "ventando", como dizia a "vó". De vez em quando apareciam inconvenientes anteninhas de barata no nosso observatório secreto, as quais espantávamos com gravetos e assopros. Um dia minha avó descobriu o buraco, e impiedosamente mandou tapar com massa. Assistimos com tristeza. Uma pena... Chupamos muita manga verde com sal, escondidos na escada atrás de casa, pra não apanhar. Rimos, choramos, enterramos juntos meu porquinho-da-índia, morto por um cachorro da rua, e depois, não demos paz ao cachorro. Hoje, meu primo e eu quase não nos vemos mais, é coisa rara. Ele tem muitos compromissos com a igreja, e eu com meus filhos, a vida vai passando. Não que moremos longe, é ali mesmo, a quinze minutos daqui . No entanto, a correria da vida é que se traduz na maior distância entre as pessoas. Mas a amizade ingênua e descompromissada dos tempos da infância permaneceu no coração. Em sua homenagem, registrei meu filho mais novo com seu nome, sob protestos de "coitado do menino!" Ainda não encontrei uma amizade mais sincera do que a que tivemos, mais profunda, mais satisfatória. No entanto, cansei de procurar o amigo ideal. Ele já existe, cresceu, tomou corpo, e saiu pela vida, ficando sem tempo pra nós. Só que eu ainda sinto falta... Hoje é seu aniversário, vinte e cinco anos, e eu não apareci na sua casa, não mandei e-mail, porque não sei o seu e-mail... Mas o coração apertou, a saudade doeu e as lembranças trouxeram mais uma vez a presença de uma amizade que nunca morre. 4. Pequena Gigante
Pé ante pé eu me levantava da cama e ia devagarinho, descobrir de onde vinha aquele barulhinho estranho de folhas de árvore caindo. Quando abria a porta, podia ver, à meia-luz da cozinha, uma figura magra e pequena debruçada sobre a mesa, passando páginas... Lá estava ela, mergulhada nos livros, os mesmos livros repetidos que tantas vezes leu. Livros usados que comprava no sebo ou que emprestava de alguém. Edições antigas que ela guardava como se fossem tesouros, e livros de família que pareciam mágicos pra mim. Durante toda a infância eu me deparei com esta cena: minha mãe sentada, lendo e escrevendo, na sua pouca instrução, no seu infinito discernimento de mulher moldada pelas dificuldades da vida. E esta influência perene desperta grande gratidão em meu coração. Ela era a sabedoria em pessoa. Seus lábios calavam o que os olhos insistiam em me dizer, e ainda hoje eu tento desvendar o que aquele olhar escondia. O contato com a leitura e a escrita foi decisivo para nosso futuro, meu e de meus dois irmãos mais velhos. Nós nos libertamos de todo o estigma que as crianças da periferia carregam, fadadas a ser menos, simplesmente porque um sistema assim determinou. Nossa mãe rompeu esta barreira para nós, e nos ensinou a levantar a cabeça, a não ter medo de olhar nos olhos, nem de falar de igual para igual com qualquer pessoa, e de reconhecer a necessidade de sempre aprender mais. Hoje tento seguir seu exemplo, e exercer sobre meus filhos a mesma influência inspiradora da qual tive o privilégio de desfrutar. Nesta tentativa de me igualar a ela é que descubro minha fraqueza. Ela que, com seus quatro anos de estudo regular, pôde transformar nossa vida para sempre com seu gosto pela leitura, sua capacidade de raciocínio, seu domínio impressionante da lógica e da coerência textual quase instintivas, me presenteava muito mais com livros do que com brinquedos. Eu com minha cara feia, que esperava mais uma boneca... Jamais poderia medir o tamanho daquele gigante que chamávamos de mãe. Ela se foi e deixou um legado do qual temo não dar conta: passar para meus filhos os valores e as prioridades que a mim foram deixados. E o que me faz vacilar é reconhecer que o efeito do meu exemplo terá neles a mesma força que o dela sobre mim. Pequena em sua estatura, gigante em sua sapiência, passou pela minha existência sempre despertando em mim algo de grande, maior que eu mesma, porque ela assim me enxergava, posto que me amava. E se eu, em minha fraqueza, conseguir alcançar metade de tudo o que ela ensinou, tudo o que fez e tudo o que amou, terei cumprido com honra minha missão de mãe. 5. Adeus a Um Vira Latas
Meu filho mais velho, como a maioria dos meninos da idade dele, é fã do Homem Aranha. Quando ele e o caçula ganharam um filhotinho de cachorro, batizaram-no de Peter Parker. Achei que um animalzinho faria bem aos dois e seria uma fonte de conforto, nos primeiros meses após minha separação. Mas o bichinho não durou muito. Contraiu uma doença dessas que dá em filhotes, e não pudemos fazer nada. Quando morreu, foi um baque para os dois, e eu fiquei preocupada... Na mesma semana, ao abrir a porta da sala, dou de cara com uma vira-latas amarelada, daquelas bem sem-vergonha mesmo, abanando o rabo pra mim. Tentei espantar antes que os meninos vissem, dei vassourada, joguei água, e nada. Ela não saía. Bom, meus filhos acordaram, viram, fizeram aquela festa, e em seguida a pergunta que eu temia: “A gente pode ficar com ela mãe? Deixa...” Com aquelas carinhas, imagina... Nem preciso falar o resto. Mas eu fui firme: “Mas vocês dois é que vão cuidar dele, dar comida, e limpar a sujeira!” A cadela, apesar da insistência dos meninos, queria mesmo era ficar comigo. Não desgrudava de perto de mim um minuto, e passou a me seguir por todo canto. Até na escola onde eu dava aula ela ia atrás de mim. Mary Jane, como a chamamos, ficou conhecida no bairro – por onde eu passava – pois se tornou a minha sombra. E assim foi, aos poucos, passando a fazer parte da família. Cadela boa, muito boa esta. Umas coisas assim que a gente não sabe explicar. Não sei de onde veio, por quê cismou com a minha cara, mas o fato é que ela ficou ali, e conseguiu preencher um vazio deixado pelo outro animal, suprindo assim a carência emocional que eles carregavam. Quando a Mary Jane ficou prenha eu fiquei muito aborrecida. Já era difícil cuidar de duas crianças sozinhas, imagine de uma cria de filhotes. Era só o que faltava... Os meninos acompanharam a prenhez, ansiosos. Todo dia iam medir a barriga da cadela, imaginar os filhotes, escolher nomes. Combinamos que íamos dar todos menos um. Nasceram cinco. Meus filhos acompanharam o parto, atentos, preocupados, de olho em tudo e fazendo mil perguntas. Foi um acontecimento! Quando um deles morreu, Mary Jane veio na porta da sala avisar. Bateu o rabo na porta até eu sair pra ver. Olhou em direção a ele e esperou que eu retirasse o corpinho, de cabeça baixa. Pela manhã foi uma tristeza. Até agora, ao todo, morreram três. Acho que nasceram fraquinhos, provavelmente a primeira cria da mãe. Hoje eu enterrei o terceiro, meus filhos em volta, olhos marejados, posição de reverência, enquanto eu cavava o buraco e depositava o bichinho gelado lá dentro. Mary Jane ficou de longe, virada para a parede, esperando eu terminar o serviço. Enquanto eu acabava de tapar a pequena cova, fiquei pensando que idéia estúpida foi deixar aquela cadela ficar em casa. Devia tê-la expulsado no primeiro dia, uma cadela de rua, que estava me dando muito trabalho e dor de cabeça, vivia com pulgas, e agora aqueles filhotes pra entristecer meus filhos e sujar minha varanda. Ao procurar pelos dois, vi que estavam lá, em volta dela, fazendo carinho na cabecinha tentando consolá-la. Cada um segurava um filhote que restara no colo, enquanto que com a outra mão, acariciavam-lhe o pelo, com tristeza. Ouvi o mais novo dizer: “A gente também gostava dele, Mary. Ele foi para o céu dos cachorrinhos.” Parei e olhei por um instante aquela cena. Percebi então que todo o trabalho que tive com aquela vira-latas e sua cria compensavam, pelas experiências que meus filhos puderam viver, e pelas lições de amor, cuidado e respeito que tive a oportunidade de ensinar. 6. Mentiras no Deserto
Bem no meio da viagem, assim, de repente, eu tive que descer. Estava no meio do deserto, e a areia me queimou os pés. Achei, à primeira vista, que não tinha como sobreviver. Aquele que me empurrou para fora disse que faria sombra, para que o sol não queimasse meu rosto. Era mentira. Com o tempo, minha pele tornou-se escura e grossa, e eu não precisei mais de sombra para me esconder. Por causa das lendas sobre o deserto, achei que encontraria a lâmpada do Aladim. Seria só esfregá-la e pronto, estaria livre. Mas esta história que me contaram também era mentira. Eu precisava continuar andando, ainda que com os pés em brasas. Meus pés – antes finos e macios – tornaram-se áridos como os de um camelo. E já não doíam mais, na areia escaldante. À noite, no deserto, faz frio e a escuridão é densa. Disseram-me que haveria uma tenda pra me proteger. Não havia. Ao longe, caravanas passando, as pessoas me acenavam, sorridentes. E de longe diziam: “Isso mesmo, continue. Parabéns, já andou bastante.” E sorrindo seguiam, fazendo festa, sua jornada. E eu fiquei. Disseram-me que atrás daquela árvore morta havia um banco onde eu poderia sentar e descansar. Eu fui ver, e era mentira. Disseram que tinha um oásis no meio do deserto. Mas era mentira. Tinha só o deserto mesmo. E eu aprendi a lidar com a sede. Aprendi a superar meus próprios limites. Aprendi a lidar com a fome, com as miragens, com as vertigens. No deserto, quase tudo é mentira. A única verdade é você mesmo. O resto todo é ilusão. Por isso poucos sobrevivem a ele. Perdem-se no meio das miragens, procurando tesouros que nunca existiram, apenas na cabeça de viajantes afetados pelo sol, e dos espertos que não vão pensar duas vezes antes de se aproveitar da sua ingenuidade. Cuidado com os espertos que te oferecem sombras. Invariavelmente é mentira. O deserto, com suas mentiras, é o único lugar capaz de fazer você conhecer sua própria verdade. A verdade de quem você realmente é. Pois é a única que, de fato, importa para salvar sua vida. Ao sair do deserto, aprendi muito sobre mentiras, ilusões e miragens. Hoje, no entanto, eu sei quem sou. Quem passa pelo deserto com água, sapatos, sombra, descanso, camelos, oásis e lâmpadas de Aladim, não conhece o deserto. E consequentemente, não conhece a si mesmo. Ainda tem um bocado de areia entre meus dedos. Às vezes corta, e ainda dói. Mas eu não tenho mais medo do deserto. Porque aprendi que sou mais forte do que ele... E vou sobreviver. 7. Adulto é Que Complica as Coisas
O menino, grudado na televisão, fica fascinado por aquela torrente de propagandas de brinquedos, e torra a paciência da mãe: - Mãe, você compra? - Mãe, você compra? - Mãe, compra pra mim? Todo dia é a mesma coisa... A mãe, para não alongar o assunto, dá sempre a mesma resposta: - Compro, filho, compro. A criança, feliz, se contenta com a promessa. E continua a pedir. Um dia, a mãe atarefada, perde a linha e responde: - Poxa, meu filho, você pede coisas demais! Não tem condição da mamãe comprar isso tudo, é muita coisa! Como você acha que a mamãe vai poder comprar isso tudo? Não dá! A criança, muito séria olhando a mãe, pensa, pensa, e finalmente resolve: - É fácil mãe. É só levar uma sacola! (Por que gente grande complica tanto as coisas?) * caso-verdade! 8. Tesouros
Esta é uma história para crianças. As pessoas grandes não podem admirá-la, pois elas só admiram aquilo que podem compreender. As pessoas grandes são assim... Por isto, deixe que a criança que existe dentro de você leia desta vez. Lá no interiorzão de Minas Gerais, onde nasceu minha avó, as pessoas iam cedo pra cama. Não havia muito o que fazer depois que o sol se punha, pois, sem energia elétrica, a luz da lamparina era fraca e dava ainda mais sono. Depois de uma viola em volta da fogueira, ou uma conversa à toa na soleira da porta, o jeito era ir dormir. Ao amanhecer, mais um dia de trabalho na roça. Na escadinha que ia dar na porta da sala, minha mãe ainda bem menina, observava o céu. De repente, viu surgir um objeto cor de fogo que riscou o breu e foi cair lá na mata. Num disparo de corrida chegou lá, antes mesmo que sua mãe percebesse. Descobriu o objeto estranho num buraco raso no chão. Era uma pedra lisa e negra, e estava ainda quente. Com cuidado recolheu-a e a levou pra casa. Tentou contar aos adultos, mas nenhum deles acreditou no que ouviu. Como ninguém lhe dera crédito, minha mãe deixou a história de lado, e o pedregulho ficou rodando por lá uns bons meses, às vezes em cima da prateleira, às vezes no chão, segurando a porta. Um dia, apareceu um amigo da família, homem muito estudado, da cidade grande. Era daquele tipo de homem que para pra escutar os pequenos. Já notou que quanto mais sábia é uma pessoa, mais atenção ela dá às crianças? E foi assim que minha mãe, sentada em seu colo, narrou-lhe a estranha história da pedra preta que caiu do céu. Finalmente alguém acreditara nela! Nenhum adulto ainda tinha parado para lhe ouvir direito, assim como o Pequeno Príncipe com o seu elefante e a sua jibóia. Vendo a pedra, o senhor pediu-lhe em confiança que deixasse levá-la à cidade, “para os homens entendidos analisarem”. Foi embora o homem com o tesouro esquisito de minha mãe na bolsa, sumindo durante meses. Ela pensava que nunca mais o veria de novo. Acabou – como era pequena – por esquecer a história. Mais de um ano depois, qual não foi a surpresa ao ver aparecer de novo o amigo, dando-lhe notícias da sua pedra-do-céu: tinha realmente mandado para análise num laboratório, e, ao ser aberta, descobriram que seu interior era de ouro puro! O senhor, muito honesto, viera dar satisfações. Estava desconsolado e muito envergonhado. Ele havia mandado fazer um descanso de caneta e uma bela caneta de ouro, para dar de presente à minha mãe. Mas sua mulher, ingrata, vendo que era coisa de valor, juntou as trouxas, passou a mão no presente e escafedeu-se. Ficou ele sem a mulher e minha mãe sem a caneta e a pedra. Como dizia Exupéry, as pessoas grandes sempre precisam de explicações. Por isso decidi acrescentar este parágrafo, para a pessoa grande esperneando dentro de você... Talvez não houvesse ouro. Talvez o objeto de valor fosse o próprio meteorito. Talvez o tal amigo tivesse desejado florear a história, para uma criança. Mas seja qual for a verdade, eu prefiro ficar com a que ela me contou, pois é a mais bela, e é a que, por muitas vezes, me fez sonhar. Ao refletir sobre o significado desta história que ouvi tantas vezes enquanto crescia, percebo que ela está repleta de tesouros: uma época em que as famílias, sem tecnologia, ainda conversavam, e as crianças contemplavam o céu. Um tempo em que as pessoas ainda dormiam. Um velho costume de narrar histórias do passado aos filhos, o qual estamos perdendo. E o maior deles: um homem sábio que apesar de seu grande conhecimento – ou por causa dele – ainda tinha tempo e interesse de parar e ouvir uma criança... Que guardava um tesouro. Quais tesouros nossas crianças estarão guardando, esperando que alguém as escute? Quais tesouros estamos guardando por deixarmos de compartilhar nossas lembranças com aqueles a quem amamos? Quantos tesouros estamos deixando de enxergar por não termos mais tempo de olhar para o céu? 9. Ele Quer Ser Criança
Agora, no meio da tarde, eu estou ensinando esta criança a ler. Não me cabe julgar a carga que ela trás consigo, ao adentrar os muros da escola. Por outro lado, é impossível ignorar esta realidade. Misturado aos textos, palavrinhas, músicas e aquela papelada toda, ele me parece uma criança comum, assim como o meu filho de sete anos. Faz um esforço tremendo para ler as palavras que, para ele, ainda são tão confusas: sa-pa-to. Toca o sinal, e depois do beijo de despedida o menino ainda permanece. Ele não quer ir embora, e pede para ajudar a organizar a sala para a aula de amanhã. Guarda as folhas, arruma as cadeiras, limpa o quadro. Senta-se e fica me observando preparar mais uma lição. Por que ele não quer ir pra casa? Aos poucos, vou me inteirando do mundo em que esta criança vive. Ele não tem casa. Mora num abrigo para crianças abandonadas, no bairro ao lado, com mais dezesseis crianças e adolescentes. Quando anoitece, dribla o vigia e foge, em direção ao centro da cidade. Algumas professoras já o viram no sinal, fazendo malabares pra ganhar um troco. Na aula passada ele veio, orgulhoso, com uma garrafa de refrigerante, oferecer-me um copo: “Toma, professora. Eu comprei com o meu dinheiro.” Mais um abraço, mais um beijo. O que parece, ao primeiro olhar, é que esta é uma criança amadurecida pelos revezes da vida. Mas o contato diário mostra-me que a carência afetiva faz dela muito mais criança para a idade que tem. Que diferença posso fazer na vida de quem – aos onze anos – já enfrentou muito mais desafios do que eu aos trinta? Como despertar a inteligência de um menino que há tanto já caiu na feroz luta pela sobrevivência? Ca-dei-ra. Cadeira. Seus olhos divagam, ele não me enxerga. Não está aqui. Em que estará pensando... no abrigo? No sinal? Na mãe? Apesar das dificuldades, ele quer ficar. O ambiente amistoso e vivo da escola lhe faz bem. Ele é uma criança, e se sente atraído por tudo que o desafia. Estar aqui é mais do que simplesmente aprender a ler, é ainda fazer parte, estar incluído no mundo, de alguma forma. É sentir aguçadas suas faculdades humanas, além do medo e da fome. E certamente, além da solidão. Se lhe negam todos os direitos humanos, na escola ele ainda encontra algum. Para onde ele vai, depois que o portão se fecha, não há ninguém que se responsabilize, nem pai, nem governo, nem instituição alguma. Ao sair, não é mais criança, é adulto. Por isso ele fica. Porque ele quer ser criança. Entre uma lição e um abraço, não sei dizer qual dos dois é o mais importante na formação desta pessoa. Mas eu vou ficar aqui, e dar os dois. Por via das dúvidas. 10. Detesto a Barbie
Nunca tive uma boneca Barbie. Sei lá o porquê. Acho que devia ser um brinquedo muito caro, ou então minha mãe nem se ligava nessas coisas – preferia me dar um livro. Já mocinha, quando via minha sobrinha com a coleção que tinha (23, se não me falha a memória), eu não conseguia atinar porque é que eu não tivera ao menos uma, no meio de outras tantas bonecas. O fato é que eu cresci, sem saber a razão, com uma raiva enorme da Barbie. Ah, me dava um sentimento ruim toda vez que via uma pela frente, que vontade de quebrar! E nunca entendi o porquê daquilo. Não seria pelo cabelo perfeito, sem uma ponta dupla e louro ainda por cima, sem nem precisar enfrentar hidratação nem chapinha, ou pela cintura irritantemente fina e o quadril enorme, pois desde antes de conhecer a ditadura da beleza eu já me enfurecia contra a boneca-patricinha. Quando li numa revista que nenhum ser humano sobreviveria se tivesse as medidas do corpo dela, comemorei! Foi só depois de adulta que, remoendo fatos passados, vim a compreender aquele sentimento. Ao morar na casa de uma tia por alguns anos da infância (para criança, cada ano é um século), sempre andei buscando me encaixar aqui e ali como filha, mesmo sabendo, no fundo, que aquilo não era possível. Apesar de muito bem tratada e amada, questões relacionadas a aceitação e amor são coisas que marcam o coração de uma criança. Pequenas cenas machucam, e quase sem exceção, permanecem para sempre. Um natal em particular ficou marcado. Foi aquele em que minha prima, mais nova que eu, ganhou a tão sonhada boneca Barbie. Ainda me lembro dela, linda num vestido rosa de cetim, numa caixa brilhante. Lembro direitinho da prima desembrulhando o presente, os olhos brilhando, o sorriso grande de alegria. E meus olhos procurando o meu presente. Logo veio, um embrulho fofo, daqueles que de longe a gente vê que é roupa – e criança detesta ganhar roupa. Quando abri, era um conjuntinho muito bonito, um daqueles que minha tia vendia. Claro que agradeci, experimentei, e até gostei. Mas naquela noite, chorei até meu nariz entupir e dormir de boca aberta, de tanto soluçar. Ah, eu nem gostava tanto assim daquela boneca magrela. Mas naquela ocasião, significou mais para mim. Representava minha condição de não-filha. Senão, eu também teria ganhado uma igual, e não uma roupa que, ainda que bonitinha, tinha sido tirada do meio de uma dúzia, numa sacola. Outros natais vieram, com tia, com mãe, com presentes e momentos felizes, de amor e gratidão, e eu fui crescendo. Mas aquela cicatriz permaneceu indelével no meu coração. Nesta vida corrida, onde as obrigações e cobranças quase nos sufocam, muito pouco percebemos as marcas que vamos cravando nas crianças que amamos. De uma forma ou de outra, mais de vinte anos depois... Detesto a Barbie. 11. Espelho Velho
A imagem que vemos no espelho não é apenas a estampa exterior de nós mesmos que enxergamos, aquela que primeiro nos apresenta. Ela guarda marcas e impressões deixadas pelo tempo, sem as quais não seríamos o que somos hoje. Cada um de nós é um amontoado de lembranças, um quebra-cabeças cujas peças são as experiências vividas refletidas em nosso comportamento e imagem de agora. Por esta razão, pessoas de diferentes classes sociais e cultura procuram variados recursos para buscar, no passado, explicações e soluções para suas mazelas atuais. Vemos gente buscando a espiritualidade, as terapias de regressão, o hipnotismo, todas em busca de respostas que as ajudem a superar medos, vícios, limitações, desafios pessoais. Muitas delas descobrem - com surpresa - conflitos escondidos, velados, nunca imaginados, guardados por muitas vezes desde o útero. Ao confrontarem seus próprios espinhos, a maioria delas consegue a cura para suas feridas. De igual maneira, nosso país guarda na memória nacional os aspectos do passado, e estes constituem a cultura de que hoje fazemos parte, e nos influencia dia-a-dia à medida que construímos nosso futuro. A colonização de exploração a que este território foi submetido, e as marcas da corrupção imperial ainda se fazem presentes em nosso cenário, influenciando e muitas vezes determinando as escolhas que fazemos hoje, quando elegemos nossos dirigentes e decidimos os rumos políticos do país. Mais do que isto, esta cultura se reflete no cotidiano, nas pequenas decisões que tomamos em nossa vida, as quais, somadas, formam o ideário nacional. A inconsciência coletiva nos faz caminhar como um rebanho sem pastor, fácil de ser manipulado e levado em qualquer direção. Assim, nosso futuro vai sendo traçado pelas mãos de outros. O despertar da consciência tem suas raízes na educação. É através dela que passamos a ter condições de analisar o passado e medir sua influência no presente, podendo assim projetar um futuro onde o peso do determinismo cultural seja sentido apenas até onde decidirmos permitir, ou até onde nos seja benéfico. As marcas do passado que todos nós carregamos, seja individual ou coletivamente, só podem ser modificadas e abandonadas depois que nos conscientizamos da existência delas. Do contrário, o futuro será apenas uma reprodução incessante dos equívocos anteriores, com maquiagem nova. Conhecer a História e sua influência em nossa cultura são condições primordiais para que os erros do passado não se repitam. 12. Quanto Vale a Sua Inocência?
Como já foi dito em outro texto*, o que importa não é quanto vale uma vida humana, mas quanto uma vida humana pode render. Em dinheiro. A pandemia tomando conta do país, pessoas morrendo no corredor por falta de leitos, hospitais lotados sem mais espaço para isolamento, e olha que bonito: as prefeituras, os Estados, as instituições federais, todos fechando as portas e adiando a volta às aulas. Preocupação com nossas crianças e nossa juventude? Bom se fosse. Como ainda no atual estágio de desenvolvimento em que se encontra nosso povo, pode a maioria continuar tão inocente? E não é a maioria sem recursos. É a maioria com grana no bolso para gastar. É certo que, com o adiamento das aulas, os governos economizam um bocado. E de quebra, calam a opinião pública. A rede municipal da minha cidade foi a última a parar, pressionada pela população e por todas as outras redes já paralisadas. Melhor não contrariar o povo. No entanto, os shoppings continuam a todo vapor, shows lotados de cantores de axé durante todo o fim de semana, onde jovens bêbados se acotovelaram sem espaço nem para caminhar. Qual é a distância de segurança mesmo? Ah, um metro. Mas nem parece. Os cinemas não podem parar de lucrar, supermercados abarrotados e até um circo está excursionando na cidade. Claro que não poderia faltar diversão para o povo esquecer a gripe... Afinal, o que um bom capitalista faz em pânico? Ou compra, ou come. Para qualquer uma das duas opções, vai dinheiro. Enquanto isso, reportagens são colocadas no ar em todos os meios de comunicação divulgando os cuidados pessoais com a higiene, transferindo para o cidadão comum o que é de responsabilidade dos governantes, numa situação de emergência pandêmica. Num show com mais de dez mil pessoas lotando um espaço até ultrapassar o limite, convenhamos que mãos limpinhas não adiantam muito. Mas liberaram. E dá-lhe cerveja. Depois de cair de bêbado, acho difícil alguém lembrar de virar pra lá na hora de espirrar. Mas o importante é que segunda-feira ninguém vai estudar. E aí? Quanto vale a sua inocência? Vale uma cervejinha?
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